Eu criei os Olimpianos

E não importa quem seja. Dá tudo na mesma.

Zeus era apenas uma formiga quando o coloquei como supremo no Olimpo. Lá, ele adquiriu proporções inimagináveis e ficou maior que eu. Meu orgulho encarnado! E não foi só ele. Eu precisava criar uma população olimpiana. Transformei uma cigarra em Apollo, um peixinho betta em Poseidon, e uma crush que sempre me ignorou em Afrodite, deusa do amor.

Não era muito difícil ser o autor de todas essas criações, devo admitir. Eu simplesmente transformava situações e pessoas simples em mega-atrações dignas de holofotes. Pode me chamar de artista, eu deixo.

Bom, isso começou bem cedo, na verdade. Quero dizer, esse lance de criar ícones. Desde muito pequeno eu queria ser como eles. Sim, como os heróis dos desenhos animados. Subia em árvores querendo saltar como um ninja e fingia invisibilidade ao atravessar a sala de estar para aprontar alguma. Quando ia brincar com os vizinhos, sempre discutíamos quem seria o Power Ranger azul e quase brigávamos para sermos dignos deste posto. De fato, os heróis me impressionavam. Almejava ser como eles e, no fundo, eu sabia que era “o escolhido” dentre os mortais para salvar os demais.

Entretanto, minha fase de artista só deu sua cara após essa época. Minha imaginação precisava ir além do que eu consumia nos quadrinhos, desenhos e filmes televisionados. Foi então que comecei a criar meus próprios personagens, ou melhor, possíveis versões minhas. Melhores versões de mim. Mas isso ainda não era o bastante.

Ênfase para alguns

Dizem que a vida é feita de referências. Decidi prestar mais atenção em meu cotidiano. Confesso que o processo não se deu de forma metódica como agora relato. Foi instintivo. Eu olhava para as pessoas que transitavam pela avenida principal – e a mais movimentada – da minha cidade, e as via ao telefone, trajadas elegantemente, dando-lhes exímia importância apenas pelo que via.

Outra vez acabei ouvindo a conversa de duas senhoras no ônibus durante o trajeto até a loja em que, na época, trabalhava. Pareciam trivialidades. Eu só tive certeza disso, quando uma delas ressaltou, incrédula, que “aquela atriz da novela das sete traiu o marido e abandonou os três filhos para morar na Austrália, um absurdo, justo ela, não creio!”, nas palavras da dona.

Era notório que o que a tal atriz havia feito era muito mais grave do que o que ocorre corriqueiramente por aí e não sabemos, porque simplesmente não nos interessa. As outras pessoas, por mais desleixadas que possam ser e mesmo que cometessem a mesma falha, não teriam tamanho destaque na vida de alguém que sequer conheciam.

Mas se algumas pessoas parecem nos decepcionar mais que outras, deve ser porque elas possuem níveis diferentes de importância para nós. Ou seja, como nos sentimos em relação à elas. Isso geralmente ocorre entre a família e círculo de amigos. Pessoas que consideramos importantes para nós. Então, por que aquela atriz era tão interessante para aquelas senhoras no ônibus? Desde quando tratamos pessoas tão distantes de nós como entes próximos que merecem nossa ênfase e opinião?

Tudo bem, tudo bem. Esse é um tema delicado a se tratar, confesso. É aquela questão de opinião que todo mundo quer propagar como vontade para os demais. Mas não é sobre isso ao que me refiro. Costumamos admirar o que para nós é belo, e não tem nada de errado em fazer isso.

O que criamos ficou maior que nós

Onde estão?

Ouço uma bela música e já quero saber quem é o artista por trás dessa obra de arte. Assisto a um filme que me prende até o final, e o acho tão digno de minha admiração que busco saber sobre os atores que o interpretaram. Me deparo com um belo outdoor e a modelo da marca me chama a atenção, logo, procuro pelo seu nome na internet. Por mais que esses sejam apenas alguns exemplos, não paramos por aí. É uma lei atual, sabe? Sempre muito sedentos por mais informação.

 

Talvez o público atual esteja realmente atraído pela sensação de “gente como a gente” e esquecendo completamente de que, na realidade, sempre foi “gente como a gente”.

 

Quando me deparei com uma notícia na internet em que o foco era uma atriz que “revelou que estava cada vez mais difícil cuidar dos filhos sem a ajuda de uma babá”, parei de zapear pela timeline. Se estamos vendo notícias tão “específicas” assim, é porque há público para esse conteúdo. Então, com que propósito estamos dando tanta relevância para um fato que é a realidade de outras mães por aí, dando ênfase a uma figura específica? Talvez o público atual esteja realmente atraído pela sensação de “gente como a gente” e esquecendo completamente de que, na realidade, sempre foi “gente como a gente”.

Vivi uma época em que políticos, em fase de eleição, deixaram de ser somente aqueles que exercem sua profissão – de notória importância – para se tornarem ídolos de extrema admiração. Quase um familiar – ou até mais que isso, arrisco dizer. Assim como na infância, eles se tornaram heróis que iriam nos salvar de nós mesmos, deles mesmos, da própria humanidade contra ela mesma. Aquela velha história que o Scooby-Doo já vem ressaltando a anos, de que os monstros são as pessoas. Os heróis são as pessoas. E no fundo, somos provenientes do mesmo lugar: do ventre de nossas mães.

Linha tênue

Mas vamos sair desse mundo das “celebridades”. Não quero correr o risco de vir alguém brigar comigo dizendo coisas do tipo “o Power Ranger preto é melhor que o azul e blá, blá, blá…”, pois esse não é o ponto e nem o objetivo. No fundo são todos heróis que, unidos, salvam o mundo e tudo mais. O fato é que sua admiração por algum indivíduo, em algum momento, já se tornou uma leve obsessão.

Em uma pesquisa realizada com o público do Kemy’s Letters , revelou que 86% dos participantes  já teve uma leve obsessão por alguém independente da fama. Isso é uma pequena amostra de como estamos bem em cima dessa linha tênue e tem sido normal desde então.

Claro, pode ser que uma das justificativas para esse fato seja a adolescência. Um quarto cheio de pôsteres de seu ator favorito ou algumas fotos do(a) crush. Mas, por ínfimo que tenha sido, eles estavam lá, em um pedestal, vestidos de nossa admiração – secreta, ou não. Pode ser que em algum momento você tenha percebido que eles eram meras pessoas e que estava fantasiando demais algo que era para ser bem real. Pois é, acontece e ainda se repete.

O Olimpo

Parece que almejamos, mesmo que não explicitamente o reconhecimento, a fama. Prestar atenção nos passos e ações de pessoas que colocamos como objetos de nossa admiração traz a sensação de familiaridade e aproximação. É meio que aquele ditado “diga-me com quem andas, que direi quem és”. Por mais que não ande por aí com seu cantor favorito, acompanhá-lo pelas redes sociais digitais provoca esse sentimento. Deveríamos parar de aspirar? Claro que não. Mas é bom sempre recordar que somos tão incríveis quanto o bonitinho que se apresenta nos palcos.

Agora que você parou para pensar sobre isso, pode me agradecer ou me xingar por ter transformado uma mera formiga em Zeus, por exaltar um carpinteiro como senhor dos trovões e ter criado o Olimpo para ressaltar minha devoção. Ou, quem sabe, pode me contrariar dizendo que foram os gregos e nórdicos que fizeram isso. Mas acredite, independente de como isso tem ocorrido, você está promovendo essas ascensões. E adivinha: continuará fazendo.

 

Ps: Vai lá pedir um autógrafo para o…

 

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