A morte me pediu em casamento

Inusitado, mas com uma lição

 

Transcrição

 

Acho que são 5 da tarde. 5h15.

“De volta à vida real. Tenho o estranho hábito de escrever enquanto estou em um avião, retornando de algum lugar. Retornar para o local do qual parti, me faz parecer estática. Ou então, com a sensação de ter vivido um grande sonho e ele está próximo de suas considerações finais.

Um senhor inconsciente move-se repentinamente ao meu lado. Seus traços generosos revelam o desconforto de estar no delgado assento.  Um som estranho sai do fundo de sua garganta. Ele não se movimenta mais. Ufa! Não o acordei.

No decorrer da história humana, cruzar o Atlântico sempre foi uma tensa eternidade. Para mim, uma eternidade gostosa.

“Para permanecer não é necessário ficar”. É o que dizia no print que havia em meu celular, de um perfil no Instagram chamado @embarque . Ele praticamente dizia que eu poderia saber quem sou independente de onde estivesse. Mas mesmo voando me parecia faltar ar.

Desorientada, talvez? Não. Nath, respire fundo de novo.

Sei que estou voltando para minha cidade de origem. Depois disso. Eu não tenho a menor ideia. É uma visão turva onde meus sonhos não se encaixam com o conveniente.

Bom, esta carta é para alguém que não conheço, mas que verdadeiramente vai me encontrar.

Vamos pousar”.

 

Pouso

Quando as portas da aeronave se abriram fechei o caderno. Prometi não abri-lo tão cedo. Aliás, meus pensamentos nunca fizeram sentido. O Fred sempre me disse que era bom eu usar a escrita como desabafo, mas nunca entendeu muito bem minhas palavras no papel, na tela, em um chat…

Pelo menos ele me dá um lar.

E lá está o sorriso quilométrico e os olhos como duas Alfa Centauri apontadas diretamente para mim. Quer dizer, são para mim? Tinham que ser.

A sessão de desembarque estava mais como um filtro vintage. Câmera lenta, partículas na lente e um jazz ao fundo.

Logo ele me puxa ao seu encontro e cochicha: “posso te carregar para todo o sempre?”

Mas um surto de cansaço toma conta do meu corpo e depois disso… “Ei, Nath, você está tão quente. Nath, Nath…”

Já sem muito ar nos pulmões, ouço uma sequência de sussurros e lamúrias que não entendo muito bem. Por que todo mundo cochicha e some? Tudo tão lento… Ah, dessa eternidade eu não gosto!

 

Ache um local para ela.

Mas é tão jovem. Problema respiratório?

Faça o teste rápido para influenza.

Quero hemograma completo, RT-PCR, glicemia, ureia…

Sim, internada, com certeza

Chame a equipe de plantão.

 

Vejo vultos brancos se movendo muito rápido perto de mim. Ouvi gente reclamando de estar tudo tão lotado e não ter espaço. Era para ser uma crise de ansiedade. Por que tanto desespero? Deve ser porque não tenho me alimentado bem ultimamente…

Tá, mas era para ser crise de ansiedade.

Quer dizer

Não que devia ser, era preferível que fosse. Mas a falta de ar e a febre que ignorei por dias não deixaram negar meu estado: se quisesse viver, eu teria que lutar.

Uma luta inconsciente em que eu nunca saberia dizer o que era real ou delírio mental.

 

Diagnóstico e delírio

Qual o resultado dos exames?

Insuficiência respiratória aguda com necessidade de ventilação mecânica invasiva, doutor

Parece que o nível de consciência está baixando.

Transfira para a Unidade de Tratamento Intensivo, imediatamente.

 

“Ei, posso te carregar para todo o sempre?”

Fred? É o Fred, né?

O que? Claro que não! Eu to viva. Eu to te ouvindo.

Acho que ouvi algo sobre coronavírus. É verdade?

Eu vou ficar bem, né? Claro! Eu ainda tenho que me casar. O Fred me pediu hoje mas… Ei! Por que você disse a mesma frase que ele? Quem é que tá falando?

 Tá bom, Se não quer dizer o nome pelo menos diz o que tá acontecendo.

Doença, mundial… Sério? (haha)

Ta…Mais de 300 mil mortes no mundo… ok, e eu to com isso? Eu não vou morrer, né?

Como assim eu não sabia? Eu moro no planeta terra sim! É! Me preveni sim! (Ué, mas tem gente que exagera!)

Não, eu não disse que você exagera. Eu só quero sair daqui de boas!

Pera, isso é um convite? Você realmente tá me pedindo pra ficar… Não mesmo. NÃO- MESMO!

O que é isso? “Para permanecer não é necessário ficar”? Essa frase não é sua. Pode parar!

Aham..

Então você está tentando me convencer que mesmo eu saindo do hospital – digamos, CURADA – eu vou permanecer do mesmo jeito.

NÃO FAZ SENTIDO! NÃO FAZ SENTIDO!

 Eu não SOU doente, eu ESTOU DOENTE!

Não, também não! Eu tenho consciência das minhas ações.

E daí que sou humana? Tá tentando me comparar com todo mundo?

Eu não aceito morrer.

Por que estou em estado de negação?

Simples, porque você não pode pedir para uma pessoa morrer. É isso!

Vão me dar um remédio milagroso e eu vou sair daqui. Estão falando que dá certo. Eu tenho fé.

 

CARA! EU NÃO TENHO CERTEZA! PARA COM ISSO! SÓ ME AJUDA!

 

Ok… eu vou ouvir. Fala!

Tá, eu reconheço que os seres humanos tentam acertar, mas erram muito. Mas esse discurso de que vai todo mundo morrer mesmo, não funciona! Alguém deve estar cuidando de mim e eu zelo por tanta gente… A vida é importante! E eu quero acreditar muito que isso tudo só é uma viagem ruim e que logo estarei em casa. Minha casa é viver… Esse seu pedido para morrer eu não aceito. 

E sabe por que eu digo não pra você? Porque para mim é muito fácil desistir, mas quem sobrevive ao caos e descobre que não existe mais um dos seus, é insuportável.

Eu não serei daqueles que sobrevivem e esquecem de que têm sorte. Você está certo. Morto é quem não liga para o outro. Não serei morta vivendo.

 Essa relação nossa acaba aqui. Caso fosse, seria o pior pedido de casamento.

Então você vai me deixar viver? Tá bom, tá bom. Entendi.

 Ok, temos um trato. Minha vida por outras vidas. Está decidido. Vou voltar porque ou necessária.

Quer dizer, todos são necessários…

Posso te pedir um favor?

Poderia diminuir os pedidos de morte?

 

(Fala do jornalista William Bonner no Jornal Nacional do dia 08/05/2020)

 

Ressignificação

Eu não morri. Mas e se tivesse?

Escrevi uma carta no avião tentando descobrir meu destino. Nada! Recebi duas propostas. Dois pedidos. Aceitei um. O outro? Barganhei. Ah, seria fácil se a morte chegasse e simplesmente dissesse que a vida é opção.

A gente não escolhe morrer. Mas muitas vezes nossas escolhas decidem aparentemente sozinhas. Eu não sei quando essa pandemia vai acabar. Mas de uma coisa eu sei. Enquanto tiver ar em meus pulmões, farei de tudo para que outros também sejam portadores deste mesmo privilégio.

Para que os outros permaneçam, é necessário que você fique por elas.

Ah! E se conversei com a morte de fato? Bom, isso eu nunca vou poder confirmar.

 

Bibliografia

https://coronavirus.saude.gov.br/manejo-clinico-e-tratamento

https://bvsalud.org/vitrinas/post_vitrines/novo_coronavirus/

https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,em-sao-paulo-50-dos-pacientes-com-coronavirus-em-estado-grave-tem-menos-de-60-anos,70003269968

https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/05/15/interna_nacional,1147782/veja-o-que-os-estudos-mais-recentes-concluem-sobre-a-cloroquina.shtml

 

 

Comentários

Leia também

Eu criei os Olimpianos

Eles ficaram maior que eu